O meu testemunho
Cristina Mota Saraiva
Foi a 30 de abril de 2014 que tudo aconteceu.
Posso dizer hoje com toda a clareza que eu era uma autêntica 'kamicase' a caminho do AVC, ou seja, tinha tudo para ser a próxima vítima, como uma bomba em movimento à espera que a cavilha saltasse, para explodir.
Tinha a tensão alta que não controlava, esquecia-me de tomar os comprimidos, era fumadora, bebia muito café e andava sempre em stress. Sabia os riscos, mas como sempre pensamos, eu também pensei que estas coisa só acontecem aos outros. Mas nesse dia de 30 de abril, aconteceu-me a mim.
Foi um dia que começou normal. Saí de casa para ir trabalhar, no Jornal Reconquista. Sendo quarta-feira, era um dia mais agitado devido ao fecho de edição. Terminada a azáfama, seguiu-se o almoço conjunto e, durante a tarde, a preparação dos conteúdos para a edição online, Terminei a minha tarefa e saí, mas recebi a informação de um acidente, com alguma gravidade, ao final da tarde. Como era hábito nestas ocorrências, dirigi-me ao local, para recolher dados. nem levei máquina fotográfica, pelo que fiz o registo fotográfico com o telemóvel. Voltei a casa e coloquei a notícia no site do jornal. Ainda liguei ao meu chefe, já não me lembro bem o motivo, mas liguei duas vezes com a mesma conversa, como o próprio me relatou mais tarde e me advertiu no momento. Mas como já toda a gente sabia da minha atitude "despassarada", ele acabou por não estranhar.
A minha irmã também me ligou, numa altura em que já me sentia um pouco indisposta, para me perguntar se tinha reparado que a notícia que colocara na internet estava cheia de erros. Como estava novamente de saída, para um trabalho que tinha combinado com um amigo, numa localidade a 12 quilómetros da cidade, pedi a um colega meu se podia corrigir os erros, peguei no carro e lá fui.
Bebemos um café, bebi um licor beirão e fumei um cigarro, antes de ir visitar a sede de uma instituição da qual esse amigo era presidente, altura em que começo a sentir-me mais indisposta. Contudo, não achei que fosse nada de anormal e regressei à cidade e a casa. Foi já em casa que me comecei a sentir mal disposta e esquisita. O braço esquerdo ficou estranho e algo dormente. E foi aqui que comecei a pensar num AVC. Liguei para a Linha Saúde 24, que me diz para ligar de imediato para o 112. Assim fiz, dizendo logo que poderia ser um AVC. Disseram-me que iam mandar uma ambulância de imediato e ficaram a falar comigo. Fiquei mais descansada, mas preocupada, pensando no AVC. Liguei à minha filha, que estava já perto de casa, e disse-lhe que devia ir para o Hospital, mas ela chega entretanto e confirma que a minha cara estava diferente, o que também já sentia. Fico ciente de que é mesmo um AVC. Sinto alguma falta de ar e chegam os bombeiros.
A partir daí, a memória só volta na Tocha, no Centro de Reabilitação Rovisco Pais, onde estive depois de uma passagem pela Unidade de AVC do Hospital Amato Lusitano e da Unidade de Cuidados Continuados do Orvalho, onde hoje me encontro, de novo.
Há um hiato temporal do qual não tenho a mínima memória. Quando cheguei ao Orvalho, reconheci algumas caras, mas outras não. Lembro-me, ainda de no início estar muito confusa e de inventar muitas histórias, umas sem nexo, mas outras perfeitamente possíveis. Mas tenho consciência que na altura "esticava-me" um bocado na língua e tinha uma imaginação muito fértil. Lembro-me, ainda de dar uma bofetada numa fisioterapeuta.
No Rovisco Pais aconteceu a minha maior reabilitação, embora reconheça algumas lacunas, mas tenho receio de ser injusta, por não me lembrar de coisas que poderão ter acontecido. No regresso a Castelo Branco, em 14 de fevereiro de 2015, e após a consulta de fisiatria, fico em lista de espera para fazer reabilitação.
É aqui que começa aquele que considero ser um problema dos doentes de AVC como eu. Sem perspetivas de quando poderia iniciar a minha reabilitação decidi, a expensas próprias, procurar um local onde pudessem ajudar-me não só a continuar a recuperar, mas acima de tudo a não deixar regredir o trabalho feito no Orvalho e na Tocha.
Uma amiga fala-me da Escola Superior de Saúde, onde o marido fazia também recuperação dos problemas que resultaram de um grave acidente. O marido dessa amiga apresentava resultados excelentes que eu reconheci depois de o ver.
E lá fui eu para a Escola, a expensas próprias, por minha iniciativa, sem qualquer indicação especializada, apenas da minha amiga que tinha provas concretas e que depressa me convenceram: não olhei para trás e ainda bem que assim foi. Aí conheci o André que foi meu fisioterapeuta e um dos meus anjos da Guarda, conforme já escrevi, num texto dedicado aos fisioterapeutas e que lhe hei de fazer chegar a ele e ao Diogo que apesar de não ter trabalhado comigo fiquei a adorar, que mais não fosse pelas nossas picardias desportivas. Eles sabem que foram muito importantes para mim, tanto que a minha irmã dizia que eu estava viciada no André e que me ia oferecer um boneco de cartão com a figura dele. Isto para dizer que ambos foram importantes, não só porque eram fisioterapeutas, mas sobretudo porque também foram amigos e esta parte é fundamental, mesmo que tenha lidado com o lampião do Diogo que mesmo quando eu levei a camisola do Sporting não me pôs na rua. Duvido que eles tenham refinado os seus gostos futebolísticos, mas a ideia é destacar a entrega ao doente e a forma bem disposta, atenciosa e próxima como se entregam e veem além dos ossos e dos músculos e como vem aí o Verão dizer-lhes que não me esqueço dos caracóis do Beirão.
E foi assim que cheguei à Escola Superior de Saúde, um local que me foi recomendado e onde tive excelentes resultados, graças ao André, que foi um dos meus anjos da guarda, mas também pelo incentivo do Diogo. Ambos foram importantes, não só porque eram fisioterapeutas, mas sobretudo porque também foram amigos e esta parte é fundamental. Tal como é fundamental a entrega ao doente e a forma bem disposta, atenciosa e próxima como veem além dos ossos e dos músculos.
Mas tenho de deixar igualmente uma palavra para a minha última fisioterapeuta antes de regressar ao Orvalho, a Elisa, que me aturou e que no início me serviu também de psicóloga porque eu chorava muito e ela deu-me todo o seu apoio, o que me levou a sentir necessidade de procurar ajuda especializada e procurei um psicólogo. E mais uma vez, por minha iniciativa fui eu que procurei um especialista. Também, mais uma vex a expensas próprias.
Passaram mais de seis meses e tinha de agir, porque estava a pagar do meu bolso não só o recurso a especialistas, como os medicamentos e tudo faz diferença no final do mês, porque estando de baixa, o rendimento é substancialmente menor que o ordenado de trabalho, como se calcula.
A meu pedido, o meu irmão fez uma exposição no Gabinete do Utente da Unidade Local de Saúde de Castelo Branco, para tentar perceber o porquê da demora, e foi, assim que consegui uma resposta para o problema. Foram-me dadas três alternativas e acabei por escolher a Santa Casa da Misericórdia para fazer a fisioterapia.
Os sistemas perfeitos não existem, mas um doente de AVC é esquecido pelo sistema.
O que está em causa é a vida das pessoas e muitas vezes, nestes casos, fazer a fisioterapia adequada e em tempo útil faz toda a diferença entre voltar, ou não, a ter autonomia. Se as respostas não tivessem tardado tanto, talvez o meu braço esquerdo tivesse recuperado e a perna já apresentasse maior sustentabilidade.
Deixo apenas uma pergunta: Considero-me uma pessoa minimamente informada e por isso não desisti de pressionar o sistema. Mas se o não fosse, como estaria eu agora? Completamente atrofiada, tolhida de movimentos, totalmente dependente e sem recuperação possível. Isto não é justo para ninguém…e o sistema...não pode ser a eterna desculpa.
PS – Este texto foi utilizado num colóquio sobre o tema, na Escola Superior de Saúde, do Instituto politécnico de Castelo Branco.